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Num mundo perfeito, globalizado mas perfeito, eu estaria hoje à noite em casa com a minha família a conversar calmamente, no quentinho, sobre a raça ideal dos cães ou sobre os novos fundos de investimento imobiliários. Mas não, só tive oportunidade de o fazer até às vinte e uma horas pois, a partir daí, os meus filhos e a minha mulher tiveram de sair, em nome de uma bruxa qualquer. “Halloween, pai”, disse o mais novo com uma abóbora na cabeça. Sinceramente, não estava à espera, quando casei em 1995, de ver a minha mulher a pedir gomas às portas dos vizinhos mas, enfim, treze anos de convívio não me ilibam de culpas. De facto a aculturação e a competência dos professores de inglês têm-se revelado superiores a mim, pobre marido e desesperado pai. Só me questiono o que levará um povo com mais de oitocentos e cinquenta anos de história, a adoptar as bruxas dos outros como pretexto de tradição, para pregar sustos às pobres pessoas que insistem, como eu, em não dar doces. Mas tradição de quem, caramba? Celtas, anglo-saxónicos, irlandeses, norte-americanos? A que propósito?
Enquadro-me bem num mundo globalizado, imperfeito que seja até, mas injusto é que não. Olho por olho, dente por dente, tradição por tradição. Tenho primeiro de mandar umas cavacas na tola dos nova iorquinos do cimo da Saint Patrick´s Cathedral na 5ª Avenida, para então dar os tais doces. Até me comprovarem que o negócio das abóboras e das velas é benéfico para o desenvolvimento económico do meu país, não dou doces a ninguém. Que se lixem os sustos. Enquanto não vir os guineenses no banho santo em pleno São João, ou os jamaicanos de jaqueta e barrete em frente a um bovino ou até, porque não, os franceses a cantar "nous chanterons le Janvier" na passagem do ano, não contem comigo para o trick or treating. Só de imaginar os suecos na matança de um porco, faz-me rir. Enfim, ou assumimos todos que as tradições são para serem o que eram ou temos de negociar, tradição por tradição. Poderei até disponibilizar o meu voto naquele partido unipessoal do centro, pseudo conservador dos valores, símbolos e tradições nacionais, mas jamais registarei na minha agenda o dia 4 de Novembro de 2008 como dia de eleições.
Já agora, e assumindo conscientemente o pretérito imperfeito, em Portugal, no dia de Todos-os-Santos, 1º de Novembro as crianças saíam à rua e juntavam-se em pequenos grupos para pedir o pão-por-deus de porta em porta. Enquanto pediam o pão-por-deus recitavam versos e recebiam como oferenda: pão, broas, bolos, romãs e frutos secos, nozes, amêndoas, ou castanhas que colocavam dentro dos seus sacos de pano. Os padrinhos ofereciam, em algumas regiões, um bolo, o Santoro. São vários os versos para pedir o pão-por-deus:
“Pão, pão por deus…à mangarola encham-me o saco, e vou-me embora.”
A quem lhes recusava o pão-por-deus rogava-se uma praga em verso:
“O gorgulho gorgulhote, lhe dê no pote, e lhe não deixe, farelo nem farelote.”
Isto sim…agora gomas. Tenho de ir, a minha vizinha pôs uma vela dentro de uma abóbora artificial no muro da minha casa. Acho que até é de porcelana nacional…da Vista Alegre. Gira.

mensagem original postada em 31/10/2008